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Rio de Janeiro : O asfalto invadiu o morro

Mariana Torres 11 febrero, 2014
Una turista posa junto a las favelas. Fuente: http://hombrerrante.wordpress.com

«O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade. (…) Acompanhei-os e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho que serpeava descendo era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e de buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábua de caixão, com cercados indicando quintais.”

Assim foi descrita pelo cronista João do Rio uma das primeiras favelas do Brasil –o morro de Santo Antônio– em 1917 no Rio de Janeiro. Naquela época, a então capital do país já era uma cidade dividida. E como diz o próprio João do Rio, as favelas já eram um “outro mundo” dentro da realidade carioca.

O Rio de Janeiro e as favelas têm uma história em comum de mais de cem anos. A existência delas está, em grande parte, relacionada à própria característica física da cidade: o Rio cresceu cercado por morros.

As favelas na cidade começaram a ter início no final do século XIX, quando várias transformações sócioeconômicas passadas pelo Brasil e pelo Rio de Janeiro começaram a inchar a área central da cidade. Nos últimos 60 anos, o número de moradores em favelas na cidade registrado cresceu 723%. De cada 100 mil pessoas que vivem na capital fluminense, 22.160 estão nas favelas.

Se hoje é comum se referir ao Rio como uma cidade dividida, essa impressão já existia no início do século passado. “Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será europeia, a outra, indígena”, escreveu Lima Barreto sobre as reformas do prefeito Pereira Passos. Com o passar dos anos e o crescimento da ocupação dos morros, o preconceito ajudou a difundir políticas que visavam à extinção das favelas.

Favelas 01 by Mariana Torres

Os problemas sóciourbanos do Rio de Janeiro são muito graves e se arrastam há séculos. Tem-se uma cidade dividida entre uma parcela mais rica que mora no “asfalto” e cerca de 700 comunidades faveladas. Estas comunidades eram e algumas ainda são, há muito, usadas pelo crime como local de recrutamento de jovens e homiziamento. As políticas de segurança empregadas nesses locais foram, via de regra, baseadas em confrontos policiais com grupos criminosos o que acabou produzindo milhares de mortes.

Atualmente restaram poucos barracos. A madeira encareceu e o tijolo e o cimento são mais baratos do que antigamente. Como nem sempre há dinheiro para um acabamento externo, muitas favelas, vistas de longe, parecem jogos infantis avermelhados e amontoados. Porém atualmente em uma mesma favela é possível encontrar de casas simples e inacabadas até casas bem estruturadas e com alto valor imobiliário, demonstrando até para quem apenas passa e olha “de baixo”, que há um movimento novo e diferente nas favelas.

Depois de anos de experiências de segurança pública mal sucedida, em dezembro de 2008, teve início uma experiência de policiamento comunitário em uma das favelas do Rio, o Morro Santa Marta, em Botafogo. Essa experiência foi intitulada Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, e é um projeto da Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro que pretende instituir polícias comunitárias em favelas principalmente da capital do estado, como forma de desarticular quadrilhas que antes controlavam estes territórios como um espaço paralelo.

O que caracteriza as UPPs e as distingue de experiências anteriores é a maneira como esses policiais chegam às favelas. A “retomada” do território é feita por uma tropa especializada que minimiza os confrontos e assegura que as armas não circulem mais na comunidade. Os primeiros policiais a chegarem aos morros são majoritariamente jovens recém-formados e sem experiências de confrontos em favelas. Esses policiais são mais bem preparados e ganham mais do que os policiais “comuns”, por meio de um convênio com o município, e têm escala e condições de trabalho melhores. Pode-se dizer que a principal característica das UPPs é que elas correspondem a uma política do governo, que estabeleceu metas na área da segurança pública baseadas na expansão dessas unidades ao longo dos próximos anos, com planejamento e orçamento definidos.

Segundo uma pesquisa feita pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2012), os resultados da implantação das primeiras 18 UPPs, do ponto de vista dos indicadores de criminalidade, são basicamente positivos. Os dados divulgados pelo governo demonstram uma diminuição das taxas de homicídio e dos crimes contra o patrimônio dentro e no entorno dessas favelas. A relação dos moradores com as UPPs ainda é dual, de um lado há um reconhecimento da melhoria que a implantação dessas unidades trouxe, porém há também denúncias de que alguns policiais estão abusando do poder de autoridade.

Retomando João do Rio, o cronista no mesmo texto mencionado acima, diz: “Eu tinha do morro de Santo Antônio a idéia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam a espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a seresta morro acima, em sítio tão laboriosamente grave.”

Favelas 03 MarianaTorres

Com essa passagem nota-se que a favela sempre foi alvo de curiosidade, sendo vista como um lugar onde as condições de vida eram precárias, porém também um reduto de intensa produção cultural. Devido ao distanciamento das populações do asfalto e do morro, o pouco contato entre elas deixava apenas a possibilidade da imaginação da vida no “outro mundo”, e somente poucas pessoas da população do asfalto de 1917 se atreviam a cruzar a fronteira social e se aventurar “no outro lado” da cidade. Naquela época o samba era o ritmo predominante no morro e proibido pela alta sociedade, décadas depois o funk passou a ser o ritmo discriminado e não permitido, evidenciando a construção histórica da ideia de que o morro era um ambiente marginalizado. Recentemente esse distanciamento entre os mundos vem diminuindo. A chegada das UPPs às comunidades e a dita “pacificação” atraiu a população do asfalto para o morro e esse espaço está sendo freqüentado por muitos turistas e jovens da classe média alta carioca. Essas incursões que até então eram esporádicas e tímidas, a partir de 2008 passaram a serem maciças nas favelas.

Com o avanço das UPPs em favelas cariocas, essas comunidades entraram de vez não só como opção de diversão com eventos noturnos, mas também na rota turística da cidade. A fórmula para atrair cada vez mais turistas é a bela vista panorâmica da capital e a segurança proporcionada pela polícia. Atualmente o Morro Santa Marta é o segundo passeio mais procurado em algumas agências de turismo, perdendo somente para o Cristo Redentor. Além de mais uma opção de turismo, as UPPs fizeram o “produto vendido” pelas favelas ficar mais interessante e altamente valorizado, com um aumento do preço dos imóveis que, em algumas favelas, ultrapassa 150%.

Essa cidade desde sempre marcada pela desigualdade e divisão social gritantes, está se confundindo e o asfalto resolveu “conhecer melhor” o morro e explorá-lo, porém ainda se mantêm a distância e diferenciação de sempre. Os turistas curiosos para conhecer aqueles locais que já foram temas de filmes chegam aos morros em jipes de safári e vêem uma realidade bem diferente da sua, tiram fotos de casas e crianças e voltam para seus hotéis, cuja diária às vezes é quase o todo o salário mensal recebido pelos moradores das favelas. Uma comparação das favelas cariocas com os zoológicos humanos que existiram na Europa no século XIX e início do século XX, não seria um grande exagero já que alguns turistas vão conhecer e saber como vive a “espécie” que consegue habitar aquele espaço, definido pelo Código de Obras Brasileiro de 1937, como uma “aberração urbana”.

Favelas 03 by Mariana Torres

A favela virou atração turística, oferecendo uma opção de lazer aos visitantes que querem entender aquele “modelo arquitetônico”. É como uma cidade dentro de outra cidade. A geografia dificulta uma coleta de lixo adequada e em muitas favelas o saneamento básico está chegando aos pouco. Essas “cidades” que cresceram, subiram, e aproveitaram o espaço que tinham, o espaço que foi dado para que a classe baixa se amontoasse e se mantivesse separada da classe alta do famoso Rio de Janeiro, agora parecem muito interessantes como uma espaço de “visitação” e contato com um espaço “exótico” e “latino” recebendo milhares de visitas diariamente.

As favelas pacificadas tornaram-se alvo de uma volúpia consumidora poucas vezes vista no Rio de Janeiro. A partir do momento em que se instalaram as Unidades de Polícia Pacificadora — UPP em algumas favelas uma legião de turistas, pesquisadores, empresários, comerciantes “descobriram” as favelas. Mas algumas perguntas precisam ser feitas e respondidas no momento em que o poder público pensa em investir nisso: o que é uma favela preparada para receber turistas? Que ‘maquiagem’ precisa ser feita para que o turista se sinta bem? O comércio local deve adaptar-se aos turistas ou servir aos moradores? Se o Morro não é uma propriedade particular e não tem um dono, todo e cada morador tem o direito de opinar sobre o que está se passando com o seu lugar de moradia.

Essas e outras questões devem pautar o debate entre moradores e destes com os gestores públicos, no momento em que estão sendo pensadas propostas de estímulo ao turismo nas favelas pacificadas.

O conceito de cidadania definido na Grécia Antiga que assegura ao cidadão o “direito de ter direitos” e o lema da Revolução Francesa – Igualdade, Lealdade e Fraternidade – parece que em muitos lugares ainda são desconhecidos. Ser cidadão não se trata apenas de receber os benefícios do “progresso”, mas de tomar parte nas decisões e no esforço para sua realização. Em lugar de ser tratado com atenções paternalistas, o cidadão passa a ser reconhecido como sujeito histórico e protagonista no processo de desenvolvimento.

O enfoque histórico-estrutural da participação popular privilegia a noção de estrutura econômica, política e ideológica nas formações sociais, procurando historicamente, as causas que geram a marginalidade e a participação. Aos pobres e ricos devem ser dadas as mesmas oportunidades de educação, saúde e escolhas. Cada um deve poder construir seu espaço e sua história.

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About The Author

Mariana Torres

Começou a vida acadêmica estudando Ciências Sociais, mas durante o curso o interesse por fenômenos psicológicos e pelo comportamento humano a fez mudar de planos. Atualmente está concluindo o curso de Psicologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mas ainda carrega seu “lado social” e encontrou na Psicologia Ambiental boas questões para refletir e pesquisar. Viajante por paixão e necessidade interna sempre carrega sua câmera, papel e caneta para registrar todo o que a afeta de alguma maneira.

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