A cidade inteligente baseada na eficiência é oferecida como uma cidade dos fluxos, da rapidez, da geração de dados 24 horas por dia. Essa quantidade ingente de dados oriundos das mais diversas fontes necessita ser armazenado e analisado por meio do modelo computacional chamado Big Data. O Big Data nas cidades implica na geração das mais diversas fontes de dados para que tudo esteja disponível, rastreável, demonstrável, visualizável e calculável. Os quatro Vs do Big Data: volume, velocidade, variedade e veracidade tratam de uma tecnologia altamente especializada e difícil de ser compreendida pelo usuário comum. Computação distribuída, dados relacionáveis e análise granular permitem combinar uma quantidade massiva de dados gerados constantemente (e que superam em muito a capacidade de um computador individual) com a visualização e análise aprofundada de dados. Informações que são geradas em grande parte pelos indivíduos na cidade e que são administradas e analisadas pelas grandes empresas de tecnologia que dominam o setor como Cisco, IBM e Telefonica, em colaboração com o poder público. A busca pelo maior, mais rápido e mais potente se nota em projetos, devidamente patenteados, que apontam para Smarter cities (cidades mais inteligentes, marca da IBM) e Internet of Everything (que vai além da Internet das Coisas visando a internet de todas as coisas, impulsionado principalmente pela Cisco) […]
Na grande mídia nota-se que o conceito de smart city é celebrado e promovido por empresas de tecnologia em colaboração com iniciativas públicas em diversas cidades do mundo. A proposta indica que a urbe, tal qual a conhecemos, seria desprovida de inteligência própria (seria necessário incluir o conceito de smart às cidades) e dependeria destas propostas para se conectar, gerar e processar informação com propriedade. Outro problema que vem sendo levantado por organizações da sociedade civil, artistas e teóricos sobre as cidades inteligentes é a questão do controle. Uma cidade que é estruturada para funcionar eficientemente, sem surpresa nem saltos, necessita constantemente de informações que permitam prever imprevistos. Renata Ávila (2016) chama a atenção para o fato das cidades do futuro promovidas pelos conglomerados tecnológicos e empresariais permitirem antecipar eventos, decidir preventivamente como controlar multidões, bloquear protestos e prever e controlar manifestações em prol de direitos do cidadão para que a ordem e o fluxo normal da cidade sejam mantidos. Os dados da NSA colhidos por espionagem em registros de chamadas de telefone permitiram ao governo determinar redes sociais, condições de saúde, crenças religiosas e muito mais. Os dados gerados pelas várias tecnologias das cidades inteligentes serão ainda mais abrangentes, massivos e reveladores.
A internet, antes um espaço considerado livre e horizontal, com o aumento dos interesses privados em explorar a conexão e uso de modo cada vez mais centralizado, combinado com o interesse do poder público em criar censura e proibições, deu origem às instituições mundiais multissetoriais para discutir e acordar leis que pudessem manter sua neutralidade e garantir a privacidade de seus usuários (Saskia Sassen, 2007, p. 105). Problemas como os apontados por whistleblowers como Edward Snowden, projetos como o Wikileaks e mobilizações de ativistas contra as leis norteamericanas SOPA e PIPA mostram que a internet é um território carregado de tensões e disputas que estão longe de serem resolvidos de modo equilibrado. Da mesma forma, um projeto global que tem acesso a dados de milhões de cidadãos (muitas vezes sem o conhecimento deles) não pode ser visto apenas sob o viés das boas intenções e promessa de qualidade de vida ofertadas por governos e empresas. Há a necessidade concreta de se compreender como estes mecanismos operam e torná-los públicos para consulta e conhecimento público e estimular a mobilização para a criação de leis de proteção de dados que podem ser usados dos mais variados modos, orientando decisões que podem ir contra os próprios cidadãos […]
A internet vem sendo um laboratório de lutas entre visões de uma estrutura que tende à horizontalidade e outra que visa cada vez mais à centralização. Ao passarmos à cidade temos toda a população considerada neste sistema de geração de dados e não apenas os que têm acesso à internet (outro direito fundamental que nos países emergentes está longe de ser realidade) ou poder de consumo. Do mesmo modo que o espaço urbano vem sendo estudado e discutido por especialistas de várias áreas juntamente com a população, não pode haver uma sobreposição hierárquica da tecnologia para a gestão do espaço em detrimento a outras áreas de conhecimento. No momento em que os dados dos indivíduos são geradores de renda, devemos ampliar a discussão entre os distintos atores que participam da cidade sobre como estes dados são utilizados e o respectivo aparato legal necessário para garantir a privacidade e segurança dos cidadãos. Soluções que aparecem sem uma real reestruturação dos modos como as cidades com largo histórico de opressão e violência vem sendo geridas não serão mais inteligentes apenas com a ampliação de sistemas de monitoramento e geração de dados.
A complexidade da cidade deve ser compreendida para além de um sistema gerado por empresas tecnológicas e controlado pelos interesses do poder público. Não se trata de rejeitar as tecnologias em sua conexão com a cidade. A presença do digital na cultura já mostra que o espaço urbano está por ele permeado. A questão que se coloca é que tipo de tecnologia queremos, levando em conta que não existe um conceito global e único de tecnologia, que está diretamente relacionado à questão de que cidade queremos. Se as smart cities forem simplesmente o uso de produtos de grandes empresas de tecnologia que atribuirão uma nova camada de controle dos cidadãos e maior privatização do espaço público, então o resultado será a cidade servindo à tecnologia com a contínua redução da liberdade individual em propostas que de saída serão fracassadas. Seriam transpostos ao funcionamento da cidade inteligente os problemas já observados nas empresas proprietárias de TI: pouca ou nenhuma transparência no gerenciamento, acesso e compartilhamento dos dados, contratos de uso restrito e submissão ao ciclo da obsolescência imposto pela indústria.
As perguntas de base que estes sistemas de dados gerados em nome da segurança e da eficiência suscitam, devem ser discutidas amplamente pela sociedade civil. Que dados podem ser colhidos sobre a cidade e os cidadãos? Não se trata de possibilidade apenas técnica, mas suas repercussões políticas, éticas e legais. Como devem ser processados, arquivados, qual o nível e o alcance e possibilidades de acesso a estes dados? Que leis existem ou precisam ser pensadas para regular estas máquinas de geração de dados sobre a cidade e a população? Até o momento estas discussões não vêm sendo realizadas com a amplitude e profundidade necessária, já que muitos dos cidadãos desconhecem por completo os projetos de smart cities que vem sendo implementados em suas próprias cidades. Com as smart cities torna-se imperativo trazer para a população, agora produtora em massa de dados de uma estrutura vertical, a discussão que relacione a tecnologia que queremos com a cidade que queremos […]
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Renata Ávila, Ciudades Rebeldes: rumo a uma rede global de bairros e cidades que rejeitam a vigilância, Boletín Antivigilancia, número 13, 2016.
Saskia Sassen, Una sociología de la globalización, Buenos Aires, Katz Editores, 2007.